"Benzadeus"

Pintura em azulejos na Igreja de São Roque (Lisboa-08/2023)

Um dia fui considerado PcD, pois sou surdo de um ouvido, mas mudaram a lei e da noite para o dia passei a ouvir, ou melhor, deixei de ser PcD.

Eu tinha a audição normal nos dois ouvidos, nunca me preocupei com surdez, ou qualquer outro problema, seja visão ou movimentação. Até que um dia tive um acidente automobilístico e acordei, dias depois, em uma UTI, surdo de um ouvido, sem movimentar as pernas, com um braço e mão paralisados e, por causa de traqueostomia, não falava, além de outros problemas que não são necessariamente de portadores de deficiência.

Minha cabeça foi a mil, afinal, estava dentro de um hospital, meio-surdo, sem andar e o braço paralisado. Pensava o tempo todo de como seria minha vida, quem cuidaria de mim, e meus filhos, ainda bem crianças, quem os sustentaria? Perguntas, divagações, cansaço de ficar na cama, programas de televisão que nada me acrescentavam. Desilusão total com a vida! Mas ao mesmo tempo lembrava que havia pessoas que eram surdas por completo, ou que estavam em cadeiras de rodas e viviam “normalmente”, trabalhadores, com família, sorridentes, felizes e isso me animava. E como essas PcD viviam, como realmente era a vida deles, quais suas dificuldades? Ter uma aparência feliz não quer dizer que realmente são felizes. Nascer deficiente é melhor do que se tornar deficiente? A mente oscilava muito, ânimos e desânimos.

E assim foi por mais de 2 meses. Então, ainda na cama, começaram sessões de fonoaudiologia e fisioterapias. Com a fonoaudiologia, passei a falar rapidamente, parecia mágica, nunca tinha dado importância à essa área. Já a fisioterapia, era apenas um faz-de-conta, pois quem mexia o braço ou as minhas pernas eram os fisioterapeutas e não eu. Mas após alguns dias comecei a ter força para levantar as pernas por alguns centímetros, até que um dia, houve teste de sair cama e, mesmo apoiado por enfermeiros, as pernas não aguentaram o peso do corpo. Mais alguns dias assim, e já estava com um andador pelo corredor do hospital.

Dois meses e pouco após a entrada no hospital, recebi a alta. Véspera de Natal! Fui para casa com andador.

Com a ajuda de colegas do trabalho, iniciei o ano na fisioterapia. Evolução contínua, exercícios e choques elétricos no lugar correto, além de muita paciência dos fisioterapeutas, profissionais que merecem o meu respeito e admiração. Com a ajuda deles, voltei a andar e movimentar o braço, “tudo” se restabelecendo.

Ao término de outros tratamentos, nove meses depois voltei a trabalhar. Mas a pequena cidade do Sul de Minas se tornou mais pequena para alguém que tinha muita vontade de andar. Fui trabalhar em uma grande cidade e, diariamente, para chegar ao trabalho, alguns poucos quilômetros eram percorridos a pé. Quis mais, me preparei, e, nas primeiras férias, fiz o "Caminho da Fé", uma caminhada de 400 quilômetros em 20 dias, percorrendo uma média de 20 km/dia.

E o ouvido? Ainda continuo "meio-surdo". Mesmo que isso não represente nada para a lei, tenho minhas dificuldades, quando escuto meu nome, mas não sei de onde vem o som, muitas vezes não ouço o telefone tocar, nem percebo as pessoas que chegam do meu lado direito, não consigo falar ao telefone e ouvir alguém ao meu lado me passando alguma informação, mas aprendi que o importante é estar vivo! Vivo posso qualquer coisa e se tenho um problema, tenho que aprender a resolver, ou contornar e até tirar alguma “vantagem”. Nesse sentido aprendi um pouco a leitura labial, pois facilita a audição, então sempre converso olhando o rosto da outra pessoa. Além de dormir muito bem, pois coloco o lado que ouço no travesseiro e não escuto mais nada do outro lado, nem o alarme do carro na rua, nem se a esposa roncou. E como ela diz, “benzadeus”.


Sebastião Marcondes∴
13/12/2018

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